A responsabilidade civil dos apoiadores por prejuízos causados pelo apoiado à terceiros

Com o advento da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/15), houve uma mudança significativa em relação ao instituto da incapacidade civil, o que resultou na criação da ação de tomada de decisão apoiada. Nesse seguimento, o procedimento foi disciplinado pelo art. 1.783-A, caput, do Código Civil, tratando-se de um processo em que “a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”. 

Nessa linha, trata-se de uma ação judicial em que se busca dar concretude à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que tem, como um de seus princípios gerais, a autonomia individual, inclusive com a liberdade de fazer as próprias escolhas (artigo 3, “a”), de modo que a nomeação de duas pessoas de sua confiança servirá para que a pessoa com deficiência possa agir com segurança na tomada de decisões envolvendo, em regra, o seu patrimônio e as suas relações contratuais com terceiros. 

Necessário destacar que o procedimento de tomada de decisão apoiada se difere da curatela justamente por objetivar uma prestação menos limitadora, pois embora ambos os institutos visem resguardar a pessoa com dificuldades cognitiva, física ou mental, no caso da tomada de decisão apoiada haverá uma atuação conjunta dos apoiadores para oferta de suporte ao apoiado, enquanto que, na curatela, o curador representará a manifestação de vontade do curatelado. Somente aí já é possível perceber que o objetivo da norma foi garantir a livre escolha da pessoa com limitações, o que resulta no reconhecimento da sua autonomia para optar pelo que melhor atender às suas necessidades. 

Por se tratar de um procedimento considerado menos limitador, em que não se visa a restrição absoluta da autonomia do apoiado, é que o §1º do art. 1.783-A, do CC, trata da necessidade de formulação de um termo, em que constarão todos os limites do apoio a ser oferecido, sem contar a confirmação de aceitação do encargo por parte dos apoiadores para responder pelos atos constantes no documento. A presunção é a de que para os atos não previstos no termo de tomada de decisão apoiada a pessoa com alguma limitação possui capacidade plena para realização, sendo que uma vez constatada a falta de aptidão para a prática de determinado ato, deverá o Ministério Público, o apoiador, o apoiado ou até mesmo uma terceira pessoa alheia à relação estabelecida requerer, em juízo, a ampliação dos limites do apoio ou, em casos mais graves, a curatela, com a indicação das razões pela qual o apoiado não possui capacidade para a prática de determinado ato sem o devido apoio. 

Tal termo é de extrema importância no âmbito jurídico, considerando que a tomada de decisão apoiada terá validade e será eficaz perante terceiros com vistas aos limites do apoio, conforme prevê o §4º1, do art. 1.783-A, do Código Civil. A consequência da prática de um determinado  ato jurídico com terceira pessoa sem a participação dos apoiadores será, pelo disposto especificamente na legislação, o reconhecimento da invalidade e ineficácia do ato jurídico. Nesse seguimento, Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel2, ao tratar em sua tese de doutoramento da eficácia prática da ação de tomada de decisão apoiada, destaca o entendimento exarado: 

Dessa feita, em relação à Tomada de Decisão Apoiada, estando o ato contido no termo de apoio, o negócio jurídico praticado pelo apoiado com terceiros, sem a participação do apoiador, é ato inexistente, restando a análise da sua validade e eficácia. 

Em outras palavras, a ausência de participação do apoiador em atos descritos no termo de apoio gera uma falta de legitimação do apoiado para a realização do negócio jurídico subsequente a ser praticado com terceiros, em razão da existência de uma relação jurídica anterior, qual seja, o negócio jurídico precedente, contido no termo de apoio homologado. 

As principais críticas envolvendo a ausência de participação dos apoiadores se encontram no fato de inexistir previsão legal para as consequências jurídicas, de não haver disposição legal específica sobre a invalidade do ato praticado e, também, por faltar imposição legal para o registro do termo de tomada de decisão apoiada junto ao Registro Civil de Pessoas Naturais, o que teria o condão de garantir a publicidade e até mesmo afastar qualquer alegação de desconhecimento acerca do apoio por parte de terceiros. 

Especificamente no que concerne à validade do ato jurídico praticado com terceiros (art. 104, inciso I3, do CC), há duras críticas doutrinárias no que tange ao disposto na legislação. Isso porque, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, buscou-se afastar o reconhecimento da incapacidade absoluta do agente para prática de atos da vida civil, em especial os negociais, de maneira que o entendimento atualmente adotado caminha no sentido de que a pessoa com limitações cognitivas ou mentais, será considerada capaz para realização de inúmeros atos da vida civil. Nesse seguimento, traz-se à tona a informação extraída do site do Ministério Público do Paraná4, em que é possível vislumbrar o reconhecimento da capacidade do apoiado para os atos da vida civil e, por via de consequência, para os atos negociais:

O apoiado não perde o seu poder de decisão e sua capacidade para realizar os atos da vida civil. O papel dos apoiadores é fornecer os elementos e informações necessários para suprir determinadas vulnerabilidades do apoiado no exercício dos atos especificados no termo de apoio.

No mesmo seguimento, importa trazer à tona os ensinamentos de Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carolina Brochado5:

A tomada de decisão apoiada não modula a capacidade civil do apoiado. Consiste numa relação jurídica entre apoiado e apoiadores, que traz para esse o dever de diligência em apoiar o primeiro nos limites do que foi estabelecido. Mas o múnus do apoiador não é pressuposto de validade do ato, volta-se apenas a suprir uma necessidade confessa do apoiado. 

Desse modo, é possível extrair que a ausência de participação dos apoiadores no negócio jurídico deverá ser vista com olhos voltados ao plano da eficácia negocial, pois embora disponha o apoiado de condições para a manifestação da sua vontade perante terceiros, por ter estabelecido uma relação jurídica com os apoiadores, concretizada por meio do termo de apoio submetido ao crivo judicial, declarou expressamente que não dispõe de legitimação específica, ou que ao menos não se sente mais plenamente seguro, para realização de determinados atos, o que resulta na falta de eficácia do ato. Visando elucidar a questão, nos valemos novamente dos ensinamentos de Fernanda Pessoal do Amaral Gurgel:

A invalidade do ato praticado pelo incapaz tem por escopo proteger a pessoa que em razão da falta ou redução de discernimento, poderiam praticar atos prejudiciais aos seus interesses. Sendo o apoiado capaz, se o ato é praticado sem a participação do apoiador, a manifestação de vontade é válida mas a ausência de legitimação levará à sua ineficácia em razão da inobservância acerca da relação jurídica constituída no termo de apoio.  

No que tange à ausência de obrigação de averbação junto ao Registro Civil, infelizmente há uma lacuna legal para tal situação. Porém, considerando que o juízo não pode se eximir do julgamento da causa pela existência de lacunas na legislação (non liquet), cabe ao julgador, valendo-se de uma interpretação sistêmica sempre norteada pelos interesses da parte mais vulnerável e das provas produzidas no procedimento, empregar seus conhecimentos técnicos para prolação de um julgamento justo e coerente, com vistas, diante das demais provas, à constatação efetiva de conhecimento ou não por parte de terceiros da condição do apoiado.

No que tange à possibilidade de responsabilização dos apoiadores por prejuízos causados à terceiros pelo apoiado, é evidente que deverá haver uma análise casuística, com vistas à atuação fática dos apoiadores nos negócios entabulados e até mesmo a obrigação de zelo e acompanhamento dessas relações negociais que envolvem o apoiado, sendo facultado ao prejudicado se valer da competente demanda visando a restituição dos prejuízos sofridos.

Porém, deve-se ter em mente as peculiaridades que envolvem a tomada de decisão apoiada, principalmente por se tratar de um instituto que possui como requisito a delimitação do apoio por meio de um termo que é sujeitado ao crivo judicial. 

Nessa linha, muito além de um requisito legal, o termo possui o condão de servir como base para a definição dos limites da responsabilidade civil dos apoiadores perante terceiros, pois, conforme informado anteriormente, no documento constará para quais atos da vida civil o apoiado necessitará de auxílio, sendo possível, desse modo, limitar a responsabilidade civil dos apoiadores aos prejuízos causados a terceiros de acordo com os contornos do encargo assumido e delimitado no documento, sem prejuízo da demonstração de responsabilidade dos apoiadores também para atos que extrapolem o termo. 

Nesse diapasão, não se pode deixar de mencionar que a conclusão adotada de que os limites da responsabilidade civil dos apoiadores perante terceiros deverá se ater, em regra, ao constante no termo, encontra respaldo no já mencionado §4º, do art. 1.783-A, do CC, que trata dos efeitos do apoio perante terceiros. 

Ora, por meio do termo homologado judicialmente serão delimitadas as obrigações que serão assumidas pelos apoiadores, de maneira que todas as demais, que não forem abarcadas pelo documento, não ensejarão responsabilidade dos apoiadores, respondendo o apoiado por eventuais danos que vier a causar. Nesse seguimento, Nelson Rosenvald6 elucida:

Assim, em matéria de danos causados a terceiros, eventual responsabilidade civil dos apoiadores dependerá da perquirição do conteúdo da avença e das funções por eles assumidas, a fim de que se avalie em quais aspectos existenciais e/ou patrimoniais o apoiado depositou especial confiança na fiel orientação dos apoiadores. A responsabilidade se destacará se apartarmos a figura do apoiador da pessoa de um parente ou um amigo íntimo. Apoiadores podem ser administradores patrimoniais – profissionais liberais remunerados (o que a lei não proíbe) -, redes de apoio, serviços comunitários ou pessoas jurídicas especialmente constituídas para o exercício do apoio (o que denotará profissionalidade, mesmo por parte de uma pequena empresa da comunidade). Naquilo que se insira no especial âmbito de diligência dos apoiadores, eventuais lesões causadas a terceiros poderão atrair a responsabilidade conjunta de apoiadores e apoiado (não a solidariedade, que requer cláusula contratual ou regra explícita).

Desse modo, é possível concluir que para que se mostre possível pugnar pela indenização em face tanto do apoiado quanto dos apoiadores, será necessário constatar os limites definidos no termo de apoio, sendo viável, ainda, em caráter peculiar, imputar a responsabilidade também aos apoiadores por atos praticados que extrapolem os limites do documento, se restar demonstrada a sua participação, incumbindo ao prejudicado o ônus da prova.

Por fim, ainda que não faça parte do escopo do presente artigo, não se pode deixar de mencionar a possibilidade de ajuizamento, por parte do apoiado prejudicado por eventual atuação negativa dos apoiadores, de uma demanda indenizatória, cujo objetivo será proceder com a cobrança dos prejuízos causados pela sua omissão, negligência ou/e imprudência, incumbindo à parte autora a demonstração da culpa ou o dolo (responsabilidade subjetiva), aplicando-se as regras gerais da reparação civil (arts. 927 e 186 do CC). 

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1 § 4 o A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado.

2 GURGEL, Fernanda Pessoa do Amaral. A eficácia prática da tomada de decisão apoiada. 2019. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019. Orientador professor doutor Oswaldo Peregrina Rodrigues. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22530. fl. 121. Acesso em: 23 jan. 2023.

3 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: 

I – agente capaz; 

4 Brasil. Ministério Público do Paraná. Disponível em: https://civel.mppr.mp.br/pagina-50.html

5 MENEZES, Joyceane Bezerra de; Teixeira, Ana Carolina Brochado. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência à luz da Constituição da República. (coord.) BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Belo Horizonte: Fórum, 2018, fl. 389.

6 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil da pessoa com deficiência qualificada pelo apoio e de seus apoiadores. Disponível em: https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1264/A+Responsabilidade+Civil+da+Pessoa+com+Defici%c3%aancia+qualificada+pelo+Apoio+e+de+seus+Apoiadores. Acesso em 24 jan. 2023.

Autora: Mayara Santin Ribeiro, sócia do escritório Reis & Alberge Advogados

Publicado em: (https://www.migalhas.com.br/depeso/384684/a-responsabilidade-civil-dos-apoiadores)